domingo, 10 de outubro de 2010

Uma Restauração de Fé - Parte 4/4

    A menina não parecia nem de longe ter o peso que tinha quando eu a carregava. Estudei a ponte conforme nos aproximávamos. Talvez, se eu tivesse sorte, eu fosse capaz de correr pela ponte sem o troll conseguir me parar.
    Tá. E talvez um dia eu vá a um museu de arte e me torne um especialista no assunto num estalar de dedos.
    Pontes são a especialidade de trolls. Seja por causa de alguma mágica ou somente por aptidão, você nunca passa pela ponte sem encarar o troll. Essa é a vida, eu acho.
    Pús a menina no chão, próxima a mim, e pisei na ponte. "Tudo bem, Faith," eu disse. "Seja lá o que acontecer, você corre para atravessar a ponte. Meu amigo Nick vai aparecer do outro lado a qualquer minuto a partir de agora."
    "E você?"
    Lhe dei um casual aceno com a cabeça. "Som um mago," eu disse. "Posso lidar com ele."
    Faith me lançou outro olhar de extremo ceticismo, e tateou para segurar minha mão. Seus dedos pareciam muito pequenos e quentes dentro de minha mão, e uma forte explosão de determinação ocorreu através de mim. Não importa o que aconteceu, não deixaria nada de ruim acontecer a esta menina.
    Nós caminhamos para a ponte. As poucas luzes que estavam brilhando mais cedo, tinham ido embora. Obra de Gogoth, sem dúvida. A noite reinava sobre a ponte e o rio Chicago gorgolejava, suave, frio e preto sob nós.
    "Tô com medo," Faith murmurou.
    "Ele é só um valentão," disse pra ela, "Encare ele de volta e ele vai se acovardar."
    Como eu queria que isso fosse verdade. Continuamos a caminhar e demos a volta bem longe do bueiro no meio da ponte, comigo mantendo meu corpo entre Faith e a entrada do covil do troll.
    Gogoth devia estar contando com isso.
    Ouvi Faith gritar e levantei minha cabeça para ver o grosso e peludo braço do troll sobre a beirada da ponte, enquanto o troll se agarrava ao seu lado como uma imensa e pesadíssima aranha. Eu rosnei e pisei em seus dedos mais uma vez e o troll rugiu com raiva. Faith se libertou e eu meio que a arremessei em direção ao outro lado da ponte. "Corre, Faith!"
    O braço do troll se embolou em minhas pernas, e ele veio subindo pela grade do lado da ponte, muito ágil e rápido para a sua compleição. Seus olhos ardentes se focaram na fugitiva Faith, e mais de sua baba gosmenta derramava de sua boca. Ele ergueu o cutelo no ar e se abaixou para saltar sobre a garota.
    Eu já estava de pé, berrei, e me arremessei em direção a perna do troll, balançando minhas compridas pernas para se embolarem com as da criatura. Ele urrou com fúria e desabou junto comigo. Eu me ouvi gargalhando e decidido. Sem sombras de dúvida, tenho pelo menos um parafuso solto.
    O troll me pegou pelo canto de meu guarda-pó e me arremessou contra a grade com força suficiente para que eu pudesse ver estrelas.
    "Mago," Gogoth rugiu, cuspindo baba e espuma. O cutelo cortou o ar novamente e o troll veio para cima de mim. "Agora você morre e Gogoth mastiga seus ossos."
    Consegui ficar de pé, mas era tarde demais. Não tinha caminho que eu pudesse correr, nem tinha tempo para me arremessar por sobre a grade.
    Faith berrou, "Harry!" e um brilhante flash de luz rosa inundou a ponte e fez o troll voltar sua horrenda cabeça em direção ao outro lado do rio. Me esquivei para minha esquerda e corri, em direção à Faith e para longe do troll. Olhei para mais adiante e pude ver o carro de Nick roncando em direção a ponte, com velocidade suficiente para me dizer que meu parceiro havia visto que algo estava acontecendo.
    O troll me seguiu, e embora eu tivesse ganho alguns passos de vantagem, eu tinha a desapontadora sensação de que a besta era mais rápida do que eu. Houve um barulho de assovio conforme o cutelo cortava o ar, e senti alguma coisa passar rente ao meu escalpo. Balancei para minha direita, e o segundo golpe errou por uma margem ainda menor. Perdi o equilíbrio, caí, e o troll estava sobre mim mais rápido do que uma batida de coração. Olhei para cima a tempo de ver ele levantar seu cutelo manchado de sangue sobre sua cabeça, para sentir sua saliva se chocar contra meu peito.
    "Mago!" o troll urrou.
    Ouve um grito e então a policial, aquela que havia me seguido antes, se arremessou nas costas do troll e o enforcou com seu cacetete. Ela deu uma torção prática no cacetete, e os olhos do troll se arregalaram. O imenso cutelo fez um grande barulho conforme caía da mão de Gogoth e atingia o chão.
    A policial se atirou para trás, fazendo com que a espinha do troll se dobrasse, formando um arco – mas ela não estava lindando com um homem. A coisa torceu a cabeça, se espremeu, e saiu de sua imobilização, e então abriu sua imensa boca e com um urro frenético, tomado de fúria, literalmente arremessou para longe o quepe sobre a cabeça da policial e a enviou tropeçando para trás com os olhos arregalados. O troll, enlouquecido, desferiu um soco no asfalto, rachando-o, e recolheu a outra mão para atingir a cabeça da policial.
    "Hei, feioso," gritei.
    O troll se virou a tempo de me ver agarrar e golpear com o imenso cutelo em sua lateral.
    A apodrecida e suja carne sob suas costelas se abriu com um uivo e com uma explosão de movimento. Gogoth arqueou sua cabeça para trás e deixou um berro agudo fugir. Me afastei, sabendo o que estava por acontecer.
    A pobre policial olhava com o rosto pálido, tomada de horror, enquanto a ferida do troll se partia, e dúzias, centenas, milhares de pequeninas e frenéticas figuras se derramavam do rasgo em sua carne, se debatendo e berrando. Os imensos músculos da criatura murchavam como velhas bolas de basquete, lentamente caindo sobre as criaturinhas conforme a ponte ficava imunda com uma míriade de pequeninos trolls, suas minúsculas e horrendas cabeças não era maiores do que a cabeça de um presidente em uma moeda. Eles derramaram de Gogoth em uma inundação, esparramando-se sobre a ponte, formando uma horda torta e vacilante.
    A face do troll se afundou, e seus olhos desapareceram. Sua boca se abriu como que se estivesse soltando um berro, e, conforme o nojento saco de couro que estava cheio de trolls se esvaziava, ele afundava no chão até lá ficar, como uma nojenta e descartada capa de chuva.
    A policial olhava, boquiaberta, tentando formar uma oração ou uma maldição. Os faróis de Nick giraram e chegaram até ponte, e com mais de vinte mil gritos de protesto, os pequeninos trolls se dispersaram ante a luz em todas as direções.
    Alguns segundos mais tarde, só havia eu, Faith, a policial, e Nick, se aproximando pela ponte. Faith se arremessou em mim e me deu um abraço rápido na cintura. Seus olhos brilhavam com empolgação. "Aquela foi a coisa mais nojenta que já vi. Quero ser uma maga quando crescer."
    "Aquilo foi...foi..." a policial falava, atordoada. Ela não era alta, era atlética, e a perda de seu quepe revelou cabelos castanhos, porém, pálidos.
    Eu pisquei para Faith, e balancei minha cabeça para a policial. "Um troll. Eu sei." Caminhei em direção ao quepe e assoprei a poeira dele. Uns poucos trolls, protestando sob o quepe, correram para a rua e desapareceram. A policial assistia com olhos perplexos. "Hei, muito obrigado pela ajuda, oficial..." vislumbrei seu distintivo. "Murphy." Sorri para ela e lhe dei seu chapéu.
    Ela o aceitou com os dedos dormentes. "Oh, Deus. Como não percebi que ele havia caído?" Ela piscou algumas vezes e então olhou para meu rosto. "Você. Você era o meliante do rapto dos Astor."
    Abri minha boca para me defender, mas nem precisei me incomodar.
    "Tá brincando?" Faith Astor interrompeu. "Este bobo? Me sequestrar? Ele não conseguiria nem roubar um cigarro do homem do Marlboro." Ela virou para mim e piscou. Então estendeu os pulsos para Murphy. "Eu admito, oficial. Eu fugi de casa. Me leva pro quarto escuro e joga a chave fora."
    Murphy, para seu crédito, parecia estar lidando bem com as coisas para alguém que acabara de confrontar o monstro debaixo da cama. Ela pegou seu cacetete e virou para Faith, examinando seus ferimentos antes de dar um olhar suspeito para Nick e eu.
    "Oh, cara," Nick disse, posicionando seu corpo volumoso ao lado do meu. "Lá vai. Você pode ficar com a parte de cima do beliche, mas não vou apanhar seu sabonete no banho."
    A policial olhou para mim e para Nick. Então olhou para a garota. Então, mais pensativa, olhou para a carcaça de couro que havia sido Gogoth, o troll. Seus olhos voltaram para Nick e para mim e ela falou, "Vocês não são aqueles que trabalham na Anjo de Retalho? A agência que procura por crianças desaparecidas?"
    "Sim, sou o dono," disse Nick, com sua voz conformada. "Ele trabalha pra mim."
    "Isso que ele disso," que seja, só entrei na dança para que Nick soubesse que não estava indo pro xilindró sozinho.
Murphy acenou com a cabeça, e olhou para a garota. "Está bem, querida?"
    Faith fungou e sorriu para Murphy. "Tô com um pouco de fome, e queria alguma coisa pra limpar esses arranhões. Mas além disso, até que tô bem."
    "E esses dois não raptaram você?"
    Faith gargalhou. "Por favor."
    Murphy acenou com a cabeça novamente e então apontou seu cacetete para mim e Nick. "Tenho de registrar isso. Vocês dois desapareçam antes que meu parceiro chegue aqui." Ela olhou de volta para Faith, e piscou. Faith sorriu para ela em retorno.
    Murphy levou a garota de volta para o outro lado da ponte, para onde estavam as outras unidades policiais. Nick e eu cambaleamos de volta para o carro. O rosto honesto de Nick tinha uma expressão de alegria nervosa. "Inacreditável," ele disse. "Não posso acreditar no que aconteceu. Aquele era o troll, qual o nome mesmo?"
    "Aquele era Gogoth," disse alegremente. "Nada maior do que um miolo de pão será incomodado por trolls nessa ponte por muito, muito tempo."
    "Incareditável," Nick disse novamente. "Pensei que estávamos mortos. Inacreditável."
    Olhei de volta para a ponte. Do outro lado da ponte, a garota estava de pé, acenando. Uma suave luz rosa fluía do anel em seu dedão direito. Pude ver o sorriso em seu rosto. A policial estava me observando, também, sua expressão era pensativa. Se tornou um sorriso.
    Vida moderna pode ser uma porcaria. E o que criamos pode ser um lugar sombrio. Mas pelo menos não tenho que ficar sozinho nele.
    Pús meu braço ao redor dos ombros de Nick, e sorri para ele. "É como eu venho te dizendo, cara. Você tem que ter fé."

Fim!

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