domingo, 10 de outubro de 2010

Vignette

     Sentei num banco no laboratório abarrotado sob o porão de meu apartamento. Estava frio o suficiente para eu me sentir obrigado a usar um roupão, mas as dúzias (ou mais) de velas queimando ao redor da sala a deixavam quente. A lista telefônica estava na mesa a minha frente.
    Olhei para meu anúncio nas Páginas Amarelas. Ele dizia:

HARRY DRESDEN – MAGO
Itens Perdidos Encontrados. Investigações Paranormais.
Consultoria. Conselhos. Preços Razoáveis.
Sem Poções do Amor, Bolsas do Infinito, Festas ou Outro Entretenimento.

    Olhei para o crânio na prateleira sobre minha mesa e disse, "Não entendo."
    "Chato, Harry," disse Bob, o Crânio. Tremeluzentes luzes laranjas dançavam nas órbitas oculares do crânio. "É chato."
    Revirei mais algumas páginas. "É, bem. A maioria é. Acho que eles não trabalham com auto-relevo."
    Bob revirou seus olhos luminosos. "Não literalmente chato, seu tonto. Chato no sentido atrativo. Não tem ambição. Não chama atenção. Não tem chutzpah."
    "Não tem o que?"
    O crânio de Bob virou para um lado e bateu o que teria sido sua testa contra um pesado candelabro de bronze. Após várias pancadas, ele se voltou para mim e disse, "É tedioso."
    "Ah," eu disse. Esfreguei meu queixo. "Acha que eu poderia ter escolhido quatro cores?"
    Bob olhou para mim por um segundo e disse, "Tenho pesadelos sobre o inferno, onde tudo que eu faço é somar números e tentar dialogar com pessoas como você."
    Olhei para o crânio e concordei com a cabeça. "Ok, tá bom. Você acha que precisa de mais drama."
    "Mais tudo. Drama pode dar conta. Ou seios."
    Respirei fundo e vi para aonde estava indo aquela linha de pensamento. "Não vou contratar uma secretária pernuda, Bob. Desiste."
    "Não falei nada sobre pernas. Mas como você tocou no assunto"
    Pús as páginas amarelas de lado e peguei meu lápis novamente. "Estou fazendo fórmulas aqui, Bob."
    "É formulae, O Maestro de Latim, e se você não se virar pra arrumar algum negócio, você não vai precisar dessas novas magias para muita coisa. A não ser que você esteja trabalhando em alguma magia para te ajudar a assaltar supermercados."
    Escrevi com tanta força que a ponta do lápis quebrou, e olhei incomodado para Bob. "Então o que você acha que ele deveria dizer?"
    Os olhos de Bob brilharam. "Fale sobre monstros. Monstros é uma boa."
    "Dá um tempo."
    "Tô falando sério, Harry! Ao invés daquela linha sobre consultoria e encontrar coisas, ponha 'Diabos Derrotados, Monstros Mutilados, Vampiros Vitimados, Demônios Demolidos'."
    "Ah, claro," eu disse. "Esse tipo de aliteração vai atrair negócios."
    "Vai sim!"
    "Vai é me colocar no ramo de hospícios," eu disse. "Bob, não sei se alguém já te disse isso, mas a maioria das pessoas não acredita em monstros e diabos nem mesmo sabe que existam."
    "A maioria das pessoas não acredita em poções do amor, também, mas você colocou lá."
    Me segurei pra conter o mal humor. "O ponto," disse para Bob, "é ter um anúncio que pareça sólido, profissional e confiável."
    "Claro. Anunciar se trata de mentir," Bob disse.
    "Hei!"
    "Você é horrível mentindo, Harry. Sério. Devia acreditar em mim nesse caso."
    "Sem monstros," insisti.
    "Tá bom, tá bom," Bob disse. "O que acha sobre darmos uma reviravolta positiva, então? Algo como, 'Donzelas resgatadas, encantamentos desfeitos, vilões desmascarados, unicórnios protegidos'."
    "Unicórnios?"
    "Garotas se amarram em unicórnios."
    Revirei os olhos. "É um anúncio para meus negócios investigativos, não um serviço de encontros. Além disso, o único unicórnio que vi tentou me espetar."
    "Você meio que está perdendo o total conceito de 'anunciar é mentir', Harry."
    "Sem unicórnios," disse firmemente. "Tá bom do jeito que tá."
    "Sem estilo algum," Bob retrucou.
    Em minha cabeça tilintou um desafio. "Vamos ver até onde vai esse estilo."
    "Ok, tá bem. Suponhamos que joguemos a inteligência aos ventos e somente venhamos a imprimir a verdade. 'Matador de vampiros, removedor de fantasmas, combatente de fadas, exterminador de lobisomens, consultor policial, oponente dos soldados do Inferno'."
    Pensei nisso por um minuto, e então peguei um pedaço de papel em branco e escrevi. Olhei para as palavras.
    "Tá vendo?" Bob disse. "Isso soaria realmente impressionante, atrairia notícia, e seria verdadeiro. O que você tem a perder?"
    "O dinheiro da gasolina dessa semana," eu disse, finalmente. "Muitas letras. Além disso, Tenente Murphy me mataria se eu começasse a soprar trombetas sobre como eu ajudo os policiais."
    "Você não tem jeito," Bob disse.
Balancei a cabeça. "Não. Não estou nisso pelo dinheiro."
    "Então por que você está nisso, Harry? Diabos, no últimos anos você quase morreu um milhão de vezes. Por que você faz isso?"
    Olhei de rabo de olho para o crânio. "Por quem alguém tem que fazer."
    "Não tem jeito mesmo," Bob repetiu.
    Sorri, peguei um lápis novo, e voltei para minhas fórmulas. Formulae. "Jeito nenhum."
    Bob suspirou e ficou em silêncio. Meu lápis rabiscou sobre papel em branco enquanto as velas queimavam quentes e firmes.

Fim!

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