domingo, 10 de outubro de 2010

Uma Restauração de Fé - Parte 1/4

    Eu lutava para segurar a escandalosa criança enquanto fazia malabarismos para enfiar uma moeda de vinte e cinco centavos dentro do telefone público e esmurrava os botões para ligar para o celular de Nick.
    "Investigações Anjo de Retalho", Nick respondeu. Sua voz estava tensa, percebi, ansiosa.
    "É o Harry," eu disse, "Relaxa, cara. Achei ela."
    "Achou?" Nick perguntou. Ele deixou fugir um longa suspiro de alívio. "Oh, Deus, Harry."
    A criança levantou um dos seus sapatos Oxford e deu um coice em minha virília. Ela acertou, forte o suficiente para me fazer pular. Ela parecia como um modelo de criança com seus oito ou nove anos, com suas covinhas e escuras maria chiquinhas – mesmo estando com seu uniforme de escola todo sujo de rua. E que pernas fortes ela tinha.
Segurei a criança com mais severidade e a tirei do chão de novo enquanto ela se contorcia e se balançava. "Ei, fica quieta."
    "Me solta, seu magrelo," ela respondeu, me fuzilando com os olhos antes de começar a chutar novamente.
    "Ouve só, Harry," Nick disse. "Você tem que deixar a garota ir embora neste exato minuto e sair daí."
    "O que?" Perguntei. "Nick, os Astors vão nos pagar vinte e cinco pratas para levar a garota de volta antes das nove da noite."
    "Tenho umas notícias ruins, Harry. Eles não vão nos pagar."
    Eu vacilei. "Ai.Talvez eu a deixe largue na delegacia mais próxima, então."
    "As notícias são ainda piores. Os pais deram queixa, falaram que a garota foi sequestrada. E o Departamento de Polícia de Chicago está enviando duas descrições para toda a cidade. Eles se parecem adivinha com quem?"
    "Mickey e Donald?"
    "Heh," Nick disse. Ouvi ele manusear sua Bic, e se lamentar. "Como se tivéssemos tanta sorte."
    "Acho que é mais vergonhoso para o Senhor e Senhora Podres de Rico vazar que a filha fugiu ao invés de ter sido raptada."
    "Diabos. Garota raptada vai dar assunto pra eles conversarem nas festas durante meses. Os faz parecer mais ricos ricos e mais famosos que seus amigos, também. Claro, estaremos presos, mas que diabos, quem se importa?"
    "Eles nos procuraram," protestei.
    "Não foi dessa forma que eles falaram para a polícia."
    "Droga," eu disse.
    "Se você for pego com ela, pode ser problema pra gente. Os Astors tem contatos e influências, cara. Larga a menina e volta pra casa. Você esteve lá a noite toda, se perguntarem."
    "Não, Nick," eu disse. "Não posso fazer isso."
    "Deixa os caras de farda levarem ela pra casa. Isso vai limpar a sua barra, e a minha também."
    "Estou na Avenida Norte, e já está escuro. Não vou deixar uma menina de nove anos por aí sozinha."
    "Dez," gritou a garota furiosa. "Tenho dez anos, seu idiota insensível!" Ela deu mais alguns chutes, eu meio que me pús fora do caminho de seus pés.
    "Ela parece tão bonitinha. Deixa ela ir embora, Harry, e os criminosos que se cuidem."
    "Nick."
    "Ah, diabos, Harry. Lição de moral de novo?"
    Sorri, mas foi apenas superficial, meu estômago se contorcia de raiva. "Veja bem, vamos pensar em algo. Apenas chega aqui e pega a gente."
    "O que aconteceu com seu carro?"
    "Quebrou nesta tarde."
    "De novo? E quanto ao El?"
    "Tô duro. Nick, preciso de uma carona. Não posso voltar pro escritório com ela, e nem quero ficar aqui parado numa cabine telefônica me degladiando com a menina. Então vem pra cá e pega a gente."
    "Não quero ir preso por que você não consegue acalmar sua consciência, Harry."
    "E sobre a sua consciência?" disparei de volta. Nick ficou furioso. Mas no fim das contas, ele não podia deixar a garota sozinha naquela parte da cidade também.
    Nick resmungou algo que soou vagamente obsceno, e então disse, "Tá bem, que seja. Mas não posso cruzar o rio tão facilmente, então estarei do outro lado da ponte. Tudo que você tem que fazer é atravessar a ponte com ela e não ser visto. Viaturas policiais na área estão procurando por você. Meia hora. Se você não estiver lá, não vou esperar. Vizinhança barra pesada."
    "Tenha fé, cara. Vou estar lá."
    Desligamos sem nos despedir.
    "Tudo bem, garota," eu disse. "Pare de me chutar e vamos conversar."
    "Vai pro inferno," ela gritou. "Me deixe ir antes que eu quebre sua perna."
    Recuei com o tom agudo que a voz dela alcançou, e saí de perto do telefone, meio que arrastando e meio que carregando ela comigo, olhando para os lados de modo apreensivo. A última coisa que eu precisava era de um bando de bons cidadãos correndo pra ajudar a menina.
    As ruas estavam vazias, a escuridão corria e se amontoava para preencher os espaços deixados pelas luzes quebradas dos postes. Tinha luzes nas janelas, mas ninguém veio em resposta ao grito da menina. Era o tipo de vizinhança onde ninguém nunca via nada.
    Ah, Chicago. Impossível não amar as enormes e povoadas cidades Americanas. A vida moderna não é sensacional? Eu poderia ser um psicopata de verdade, ao invés de apenas parecer um, e ninguém teria feito nada.
Isso me deixou meio enjoado. "Olha. Sei que você está com raiva agora, mas acredite em mim, estou fazendo o que é melhor para você."
    Ela parou de chutar e me encarou. "Como você sabe o que é melhor para mim?"
    "Sou mais velho que você. Mais sábio."
    "Então por que você está usando essa capa?"
    Olhei para o meu grande guarda-pó preto, com seu manto pesado e longas dobras de lona esvoaçando ao redor da minha constituição magra. "O que tem de errado com minha roupa?"
    "Ela fazia parte do figurino de El Dorado," ela retrucou. "Quem você era pra ser, Ichabod Crane ou o Homem Marlboro?"
    Resmunguei. "Sou um mago."
    Ela me deu aquele olhar de ceticismo que somente crianças que recentemente passaram  pelo triste trauma de descobrir que não existe Papai Noel. (Ironicamente, ele existe – mas ele não pode trabalhar com a mesma escala que estava acostumado a fazer quando todos acreditavam nele. Mais caracteríticas da vida moderna.)
    "Você tá me gozando," ela disse.
    "Eu te achei, não foi?"
    Ela franziu a testa. "Como você me encontrou? Pensei que aquele lugar era perfeito."
    Continuei andando em direção à ponte. "E ele teria sido, por mais ou menos mais dez minutos. Então aquela lixeira estaria cheia de ratos procurando por algo para comer."
    A expressão da menina ficou palidamente verde. "Ratos?"
    Concordei com a cabeça. Com um pouco de sorte, talvez eu pudesse ganhar a confiança da menina. "Ainda bem que sua mãe tinha sua escova de cabelos na bolsa dela. Pude pegar um pouco de cabelo."
    "E daí?"
    Suspirei. "E daí que eu usei um pouco de taumaturgia e ela me guiou direto para você. Tive que andar a maioria do caminho, mas direto para você."
    "Tauma o que?"
    Perguntas eram melhores do que chutes, em qualquer hora. Continuei respondendo. Diabos, gosto de responder perguntas sobre mágica. Orgulho profissional, talvez. "Taumaturgia. É mágica ritual. Você desenha conexões simbólicas entre pessoas, lugares, eventos e modelos representativos reais. Então você investe um pouquinho de energia para que algo aconteça na pequena escala, e algo acontece na grande escala também - "
    A garota virou a cabeça no segundo em que eu estava distraído sua pergunta e mordeu minha mão.
    Gritei algo que provavelmente não deveria ter gritado perto de crianças, e puxei minha mão. A menina caiu no chão, ágil como um macaco, e saiu correndo em direção à ponte. Sacudi minha mão, gritei comigo mesmo e saí correndo atrás dela. Ela era rápida, seus rabos de cavalo flutuavam atrás dela, sapatos e meiões sujos voavam noite adentro.

Continua!

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