domingo, 10 de outubro de 2010

Uma Restauração de Fé - Parte 2/4

    Ela chegou primeiro na ponte, uma antiga ponte de duas vias que se arqueava sobre o rio Chicago e se arremessou em direção a ela.
    "Espera!" gritei atrás dela. "Não!" Ela não conhecia essa cidade como eu conheço.
    "Babaca," ela devolveu, sua voz parecia cheia de energia. Ela continuou correndo.
    E ela continuou assim até que um grande, viscoso e peludo braço se esgueirou por debaixo da tampa de bueiro no meio da ponte e enrolou seus escorregadios dedos em um de seus tornozelos. A menina gritou em súbito terror, se esborrachando de frente no asfalto e arranhando a pele de ambos os joelhos. O sangue formava manchas escuras em suas meias sob o brilho das poucas luzes funcionais dos postes.
    Xinguei baixinho e investi em direção a ela, pulmões saindo pela boca. A mão se apertou, e começou a arrastá-la de para o boeiro. Eu podia ouvir uma profunda e crescente gargalhada vindo das trevas no buraco que ia para baixo da sub-estrutura da ponte.
    Ela gritou, "O que é isso, o que é isso? Faz isso me soltar!"
    "Garota!" gritei. Corri em cireção ao bueiro, saltei e aterrissei o mais pesado que pude sobre o braço peludo, bem no pulso, o solado de ambas as botas esmagando a carne suja.
    Uma barriga surgiu do bueiro, e os dedos afrouxaram. A garota virou a perna, e acho que isso custou a ela um de seus caros Oxfords e um pé de meia, ela se arrastou para longe das garras, soluçando. Eu a peguei e recuei, não seria idiota de dar minhas costas para o bueiro.
    Não era pro troll ser capaz de se espremer para fora de um buraco tão pequeno, mas ele o fez. Primeiro veio aquele braço sujo, seguido de um ombro encaroçado, e então sua cabeça mal formada e rosto hediondo. Ele olhou para mim e rosnou, saido do bueiro com uma facilidade viscosa, até ele ficar no meio da ponte entre eu e o outro lado do rio, como um lutador profissional de luta-livre que fora vítima de um cirurgião plástico por correspondência. Em uma mão, ele segurava um enorme cutelo, com uma lâmina de aproximadamente sessenta centímetros, com um cabo de osso e manchas marrom escuras muito suspeitas.
    "Harry Dresden," o troll roncou. "Mago nega Gogoth de sua presa por direito." Ele balançou o cutelo para a esquerda e para a direita. A arma soltou um pequeno assovio conforme mutilava o ar.
    Ergui minha cabeça e afirmei meu queixo. Não é muito inteligente deixar um troll ver que você está com medo dele. "Do que você está falando, Gogoth? Você sabe tanto quanto eu que mortais não fazem mais parte do jogo. O Acordo Unseelie estabeleceu isso."
    A cara do troll se contorceu com olhar realmente maligno. "Criança bagunceira," ele rosnou. "Criança bagunceira ainda é minha." Seus olhos se apertaram, e começaram a arder com uma fome maliciosa. "Dá! Agora!" O troll avançou alguns passos em direção a mim, adquirindo uma vantagem momentânea.
    Levantei minha mão direita, forcei um pouco de vontade, e o anel de prata sobre meu terceiro dedo brilhou com uma clara luz frígida, mais brilhante do que a iluminção em volta da gente.
    "Lei da selva, Gogoth," eu disse, mantendo minha voz calma. "Sobrevivência do mais apto. Você dá outro passo e vai parar na categoria 'muito idiota para viver'."
    O troll rosnou, não diminiu a passada, e levantou um punho brutal.
    "Pense bem, criatura das trevas." rangi os dentes. A luz emanando de meu anel assumiu um tom diabólico, quase nuclear. "Mais um passo e você vira vapor."
    O troll exitou, e seus lábios emborrachados cor de limo se afastavam de presas fétidas. "Não," ele roncou. Saliva escorria de suas presas e se esborrachava no asfalto enquanto ele encarava a menina. "Ela é minha. Mago não pode interferir nisso."
    "Ah é?" eu disse. "Então, olha." E com isso, baixei minha mão (junto com a intimidadora luz prateada), dei ao troll meu melhor olhar intimidador, e com estilo, virei meu guarda-pó escuro para voltar para a Avenida Norte com passadas longas e confiantes. A garota olhava por sobre meu ombro, olhos arregalados.
    "Ele está vindo atrás da gente?" perguntei baixinho.
    Ela olhou para o troll, e então, para mim. "Uh, não. Ele tá só olhando pra você."
    "Ok. Se ele começar a andar, me deixe saber."
    "Pra você pode vaporizar ele?" ela perguntou, sua voz, trêmula.
    "O diabo que eu vou. Aí a gente corre."
    "Mas e sobre...?" ela tocou o anel em minha mão.
    "Menti, garota."
    "O que!?"
    "Menti," repeti. "Não sou um bom mentiroso, mas trolls não são muito espertos. Foi só um show de luzes, e ele caiu, e é isso que importa."
    "Pensei que você tinha dito que era um mago," ela me acusou.
    "Eu sou," respondi, contrariado. "Um mago que estava em uma assembléia-barra-exorcismo antes do café da manhã. Então tive de encontrar dois anéis de casamento e um par de chaves de carro, daí passei o resto do meu dia correndo atrás de você. Tô acabado."
    "Você podia explodir aquela...aquela coisa?"
    "Era um troll. Claro que eu poderia," eu disse, orgulhoso. "Se eu não estivesse tão cansado, e se fosse capaz de me focar o suficiente para evitar explodir a mim mesmo junto com ele. Minha mira é ruim quando estou cansado desse jeito."
    Alcançamos o final da ponte, e, torci, final do território de Gogoth. Comecei a pôr a garota no chão. Ela era muito grande para ser carregada. Então eu vi um pé descalço balançando, e sangue formando placas escurdas em seu joelho. Suspirei, e comecei a caminhar pela Avenida Norte. Se eu puder descer o longo quarteirão para a próxima ponte, atravessá-la e percorrer o outro quarteirão dentro de meia hora, e ainda poderia encontrar Nick do outro lado.
    "Como está sua perna?" perguntei.
    Ela deu de ombros, embora housse dor em seu rosto. "Ok, eu acho. Aquela coisa era de verdade?"
    "Pode apostar," eu disse.
    "Mas ele era...ele não era..."
    "Humano," eu disse. "Não, mas que diabos, garota. Um monte de pessoas que eu conheço, não são realmente humanas. Olhe a nossa volta. Bundy, Manson, os outros animais. Aqui mesmo em Chicago, você tem os Vargassis atuando em Little Italy, as gangues Jamaicanas, outros. Animais. O mundo está cheio deles."
    A garota fungou. Olhei para seu rosto. Ela parecia triste, e muito sábia para a sua idade. Meu coração derreteu.
    "Eu sei," ela disse. "Meus pais são assim, um pouco. Eles não pensam em mais ninguém, na verdade. Só neles mesmos. Nem mesmo um no outro – exceto no que podem ganhar entre si. Eu sou apenas um brinquedo que deve ficar jogado no armário e arrastado para fora quando as pessoas aparecem, aí eu posso ser mais bonita e mais perfeita do que seus outros brinquedos. No restante do tempo, eu fico no caminho deles."
    "Hei, anime-se," eu disse. "Não é de todo ruim, não é?"
    Ela olhou para mim, e virou o rosto. "Não vou voltar pra eles," ela disse. "Não me importa quem você seja ou o que você faz. Você não pode me fazer voltar para eles."
    "Aí é que você se engana," eu disse. "Não vou te deixar aqui."
    "Ouvi você falando com seu amigo," ela disse. "Meus pais estão tentando te sacanear. Por que você ainda está fazendo isso?"
    "Tenho outros seis meses para trabalhar para um investigador licenciado antes que eu possa receber minha própria licença. E eu tenho essa coisa estúpida sobre abandonar crianças no meio de grandes e malvadas cidades após escurecer."
    "Pelo menos aqui em baixo, ninguém tenta mentir e me dizer que eles se importam, senhor. Eu vi todos aqueles shows da Disney sobre como os pais amam seus filhos. Como se existisse alguma espécie de elo mágico de amor. Mas isso é mentira. Como você e aquele troll." Ela deitou a cabeça no meu ombro, e eu pude sentir o cansaço de seu corpo conforme me abraçava. "Não existe mágica."
    Fiquei em silêncio por vários passos, somente a carregando. Foi difícil ouvir aquilo de uma criança. O mundo de uma garota de dez anos devia ser cheio de música, risadas e notas, e bonecas, e sonhos. Não uma realidade cruel, árida e esgotada. Se não existia luz no coração de uma criança, uma garotinha como essa, então qual esperança qualquer um de nós poderia ter?
    Alguns passos mais tarde, eu percebi algo que não estava querendo admitir para mim mesmo. Uma silenciosa e calma voz vinha tentando me dizer alguma coisa que eu não estava disposto a ouvir. Eu estava no ramo da magia para tentar ajudar pessoas. Para tentar fazer as coisas melhores. Mas não importa quantos espíritos malignos eu tenha confrontado, não importa quantos pretensos magos negros eu tenha rastreado, sempre tinha mais alguma coisa, pior, esperando no escuro por mim. Não importa quantas crianças perdidas eu encontrasse, sempre existiria dez vezes mais desaparecidas.
    Não importa o quanto eu tentasse, quanto lixo eu limpasse, era só uma gota no oceano.
    Pensamentos pesados para um cara como eu, cansado e dolorido, meus braços pesavam com o peso da menina.
    Luzes piscando me fizeram levantar a cabeça. A boca de um dos becos entre os prédios havia sido lacrada com fita policial e quatro carros, luzes azuis girando, estavam estacionados na rua em volta do beco. Um par de paramédicos estavam retirando uma figura coberta em uma maca para fora do beco. Os flashes das câmeras iluminavam o beco em explosões brancas.
    Parei, hesitante.

Continua!

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